História do Carnaval de Torres Vedras

A primeira referência conhecida dos festejos do Entrudo em Torres Vedras remonta a 1574. Trata-se de uma queixa apresentada por Jerónimo de Miranda, morador na então vila de Torres Vedras, contra uns jovens que “corriam o galo” no dia de entrudo (hábito comum noutras regiões do país), como testemunha um documento da Chancelaria de D. Sebastião.

Durante o século XIX até cerca de 1920, o Carnaval era celebrado em casa de particulares e nas sociedades recreativas, cujos programas carnavalescos consistiam em bailes, teatro e récitas. Assim, à exceção de um ou outro folião mascarado, não haviam festejos de rua no Carnaval. Existem, inclusivamente, registos jornalísticos que evidenciam o contraste entre a pouca animação de rua e os divertimentos dos grémios e salões de coletividades.

Note-se, ainda, que algumas brincadeiras de Carnaval como lançar “pulhas” não eram bem vistas pelas autoridades e pela opinião pública.

No entanto, no início do século XX verificaram-se dois momentos em que as festividades de rua tiveram grande expressividade: em 1908 e em 1912. Estes fenómenos parecem estar associados à elite republicana local, que aproveita o Carnaval para fazer uma caricatura ao contexto político-social.

O assassinato de D. Carlos, em 1908, é um episódio marcante na vivência do Carnaval de rua em Torres Vedras, como evidenciam as notícias do jornal Folha de Torres Vedras desse ano, em contraste com as do ano anterior.

Se em 1908, um grupo de mascarados satirizaram os franquistas (partidários do governo liderado por João Franco, político português que governou entre 1906 e 1908), em 1912, parodiavam as tropas contrarrevolucionárias de Paiva Couceiro (que liderou a contrarrevolução monárquica que sucedeu à proclamação da República).

Esta última manifestação mereceu destaque na Ilustração Portuguesa, com a seguinte legenda:

“Em Torres Vedras: Paródia carnavalesca «Invasão dos Paivantes» o exército afuguentado pelo «Zé Povinho», que lhes atira uma bomba de 5 reis”.

Já por volta da década de 1920, grupos de rapazes, organizados numa comissão, puseram em marcha os cortejos e burricadas de rua, influenciados pelos cortejos feitos por estudantes em Lisboa.

 

As origens do Carnaval contemporâneo

O Carnaval de Torres Vedras apresenta características tipicamente urbanas, ao mesmo tempo que mantém particularidades do entrudo rural.

As características tipicamente urbanas têm a sua origem numa elite local republicana e num grupo social emergente comercial e industrial que, no início do século XX, introduziu o corso, os carros alegóricos, as batalhas de flores e as figuras dos Reis do Carnaval (que remontam aos modelos carnavalescos franceses e italianos).

Por outro lado, alguns elementos rurais que visavam, na sua origem, a expurgação e purificação das comunidades - como o julgamento e a queima do entrudo - subsistiram no Carnaval de Torres Vedras. O mesmo aconteceu com a figura da matrafona, outro exemplo de transgressão das regras sociai, através da inversão dos papéis de género masculino e feminino.

O Carnaval de rua ganha outro protagonismo no ano de 1923. Foi nesse ano que teve início a “dinastia” régia, apenas com o Rei, protagonizado por Álvaro André de Brito. O ano marca o início da tradição do Rei do Carnaval de Torres Vedras, ainda que as manifestações carnavalescas sejam seculares.

Nesse ano, realizou-se a primeira receção ao Rei do Carnaval, que consistia num cortejo real com início na estação ferroviária, seguindo até ao Centro Histórico (com passagem pelas associações recreativas), acompanhado pelos ministros, pelas suas Matrafonas e pela banda filarmónica dos bombeiros.

No ano seguinte, surgiria a primeira Rainha do Carnaval de Torres Vedras, interpretada por Jaime Alves.

Apesar da importância crescente do Carnaval de rua, as coletividades não perderam o seu “lugar”. O Casino e o Grémio Artístico Comercial surgiram no início do século, seguindo-se, mais tarde, a Tuna Comercial Torreense. Posteriormente, inauguraram salas de cinema como o animatógrafo e o Teatro-Cine Ferreira da Silva, que também apresentavam programas especiais para esta quadra.

A eleição de uma Rainha matrafona, em 1924, poderá ter desencadeado um efeito difusor pelos homens no período carnavalesco, em que a transgressão de regras e a sátira imperam. As dificuldades económicas dos homens do campo também podem estar na origem do fenómeno. Não havendo dinheiro para comprar máscaras, recorriam ao vestuário da esposa ou da mãe.

O Carnaval de Torres Vedras conquistou projeção nacional logo na década de 1930. Considerado um cartaz turístico da região, foi, desde cedo, apoiado pela Comissão de Turismo.

A primeira Batalha de Flores realiza-se em 1931, na Avenida 5 de Outubro, em recinto fechado. O lucro desse ano reverteu a favor da Colónia Balnear Infantil de Santa Cruz.

Os primeiros cabeçudos surgiram na década de 1930 pelas mãos de Luís Faria, pintor, e Amílcar Guerreiro, artista plástico e autor da caraça que integra o logotipo do Carnaval de Torres Vedras.

Os primeiros cabeçudos terão surgido no Carnaval de Torres Vedras em 1937, pelas mãos dos artistas Luís Faria e Amílcar Guerreiro.O elefante de S. Gião, 1933. Fotografia disponível na Biblioteca Municipal de Torres Vedras

Ainda durante a década de 1930, os carros alegóricos eram de particulares ou de casas comerciais.

Até 1940, os festejos carnavalescos atraem cada vez mais pessoas de todo o país, ganhando projeção a nível nacional e desempenhando um papel cada vez mais importante na economia local. No entanto, a Segunda Guerra Mundial levaria à interrupção dos festejos, entre 1941 e 1945.

Nesta década, destaca-se o ano de 1948, pela intenção de fazer “ressurgir” a vitalidade do Carnaval de Torres Vedras, estimulado pela comissão de festas. Aponta-se para que, nesse ano, tenha também surgido a “pandilha”, grupo de teatro que percorria as coletividades locais fazendo crítica social e política, na senda do tradicional Entrudo rural.

Os zés-pereiras surgem no Carnaval de Torres Vedras na década de 1960. O primeiro concurso público de desenhos de carros alegóricos realizou-se em 1966 e o primeiro passeio auto-trapalhão em 1971. No âmbito da comemoração do 50º aniversário do Carnaval, promove-se o primeiro concurso fotográfico, em 1972.

De 1978 a 1983, o Carnaval foi organizado por uma comissão, com o apoio da Câmara Municipal. Os lucros desses festejos reverteram a favor do Asilo de São José.

Os danos e prejuízos provocados pelas grandes cheias que assolaram Torres Vedras em 1983 motivaram o cancelamento do Carnaval no ano seguinte. Em 1985, a Câmara Municipal de Torres Vedras havia de centralizar a gestão e organização dos festejos.

 

Décadas de inovação e crescimento

A partir de 1988, por sugestão de José Pedro Sobreiro (artista plástico que realizou os projetos dos carros alegóricos entre 1981 e 1993 e ainda em 2001) o Carnaval de Torres Vedras começou a apresentar um tema anual. Em 1989, o evento foi, pela primeira vez, transmitido em direto por um canal de televisão. 

A década de 1990 ficou marcada por várias inovações que se mantêm aos dias de hoje, como a realização do corso escolar (1990), do Carnaval de Verão em Santa Cruz (1995) e do Monumento ao Carnaval, na altura designado como o "lançamento da primeira pedra" (1999). 

Entre 1997 e 2005, foram, ainda, introduzidos os "cavalinhos" musicais nos corsos, o Concurso de Grupos de Mascarados, o Corso Trapalhão, o Tó' Candar (2000) e a Chegada dos Reis na sexta-feira à noite (2004).

Em 2000, a produção do Carnaval foi entregue à empresa municipal Promotorres, que envolve no processo as associações, grupos e demais cidadãos que participam no evento.

Oito anos depois, o tradicional cocote foi substituído pelo cubo de esponja, por razões de higiene e segurança.

Em 2009, o Carnaval de Torres Vedras estaria no centro das atenções por motivos diferentes dos habituais. Um mandato do Ministério Público decidiu a remoção da imagem do ecrã do "computador Magalhães" (parte integrante do Monumento ao Carnaval de Torres Vedras daquele ano) por suposto conteúdo pornográfico. Uma decisão que teve um "volte-face", com a posterior autorização daquela entidade para a colocação de uma imagem idêntica à referida.

À semelhança do que aconteceu ao longo da década de 1990, as inovações continuaram a surgir. Em 2011, o Carnaval de Torres Vedras contou, pela primeira vez, com um palco junto ao Mercado Municipal, enquanto em 2014 se realizou o primeiro Concurso de Matrafonas.

O ano de 2014 ficaria marcado por um acontecimento inédito, com o Carnaval de Torres Vedras a participar nas Marchas Populares de Lisboa, a convite do então presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa.

O reconhecimento a nível nacional e internacional continuou a crescer e, em 2016, as embaixadoras da Austrália e do Paquistão, Anne Plunkett e Humaira Hasan, haviam mesmo de visitar os festejos. Em 2017, seria a vez do embaixador do Japão, Hiroshi Azuma, e da embaixadora da Índia, Nandini Singla.

Dentro de portas, foi em 2017 que Torres Vedras integrou a Rede de Cidades de Carnaval da Região Centro. Em 2018, o Carnaval de Torres Vedras contou com o alto patrocínio do Ministério do Mar (a então ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, visitou o evento no domingo), seguindo-se o alto patrocínio do Ministério da Economia, em 2019. Nesse mesmo ano, uma comitiva do Carnaval de Torres Vedras levou a folia ao Palácio de São Bento, residência oficial do primeiro-ministro, onde foi recebida por António Costa.

Em paralelo, o evento conheceria novos caminhos no que toca à sua projeção. O filme documental O Carnaval de Torres Vedras venceu o primeiro prémio na categoria internacional "Eventos Culturais" do Festival ART&TUR - Festival Internacional de Cinema e Turismo, em 2016, o filme de Edgar Pêra Delírio em Las Vedras apresentou um "registo delirante e excêntrico do Carnaval", em 2017, e o lançamento do Samba da Matrafona fez-se no Teatro-Cine de Torres Vedras, em 2018.

aplicação do Carnaval de Torres Vedras para plataformas digitais foi lançada em 2018, ano em que o evento contou com a presença do reconhecido fotógrafo Eduardo Gageiro, que registou os momentos mais importantes do Carnaval. Os Reis do Carnaval viriam mesmo a atribuir um decreto real em que nomearam o fotógrafo como Visconde da fotografia ambulante do Carnaval de Torres Vedras.

Entre as inovações registadas em 2019, encontramos o Arraial Fest, com a festa a fazer-se na Praça Dr. Alberto Avelino ao som de música popular portuguesa. Foi, ainda, implementado um novo sistema de barreiras de segurança, que incluía barreiras modulares antiterrorismo e um sistema de videovigilância.

Este foi o ano em que o Carnaval de Torres Vedras foi distinguido com a menção honrosa de mérito turístico 1.º grau, atribuída pelo Governo português, através da secretária de Estado do Turismo, Ana Mendes Godinho. Já em 2020, o Carnaval foi finalista regional do concurso 7 Maravilhas da Cultura Popular.

Seguir-se-iam anos difíceis para todos os foliões, com a pandemia de COVID-19 a motivar o cancelamento dos festejos em 2021 e 2022.

Com imagens captadas ao longo da preparação e realização do Carnaval em 2020, o último antes da pandemia, Mariana Castelo Branco haveria de preparar o documentário Matrafonas, que estreou em 2022.

A matrafona como fenómeno social e coletivo é mesmo identificado como um dos fatores que contribuem para a "singularidade da festa". Assim se escreve a ficha de património imaterial, uma vez que o Carnaval de Torres Vedras integrou o Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial em 2022.

Em 2023 realiza-se a primeira edição do Carnaval de Torres Vedras desde a pandemia. E para tornar o ano ainda mais especial, o evento marca o início das comemorações do Centenário do Carnaval de Torres Vedras, que decorrem até 14 de fevereiro de 2024.

 

O entrudo nas aldeias

Paralelamente à ascensão do Carnaval urbano na cidade durante a década de 1920, o entrudo rural persistiu nas aldeias.

Segundo Ana Margarida Santos (2000), o Entrudo rural de carácter grosseiro e violento persistia e era praticado nalgumas aldeias do concelho de Torres Vedras, através, por exemplo, das pulhas, encenação ou declamação de textos de tom insultuoso e de crítica social, que expunham publicamente a moral e os comportamentos de vizinhos que não seguissem o cânone social estabelecido.

Venerando de Matos (1998) afirma que ainda nos anos de 1920, as pulhas seriam a principal brincadeira de Carnaval na zona rural do Concelho.

Uma das descrições mais pormenorizadas do Entrudo rural é de Rodney Gallop que, na Cadriceira em 1932, documentou aquilo que intitulou de cegada - uma teatralização em que homens cantavam e dançavam, culminando com uma mulher a “encenar” um parto.

A manifestação de cegadas, lançamento de pulhas, teatralização espontânea, danças e contradanças entre aldeias vizinhas eram práticas habituais no Entrudo rural.

Entre o final do século XIX e o início do século XX, o modelo rural das pulhas, cegadas e outras manifestações (como o arremesso de grão, feijão da farinha, água suja ou dejetos) foi fortemente criticado pela imprensa da época, sendo alvo de repressão e proibição policial e municipal devido aos novos modelos de celebração do Carnaval.

Fonte: Registo do Carnaval de Torres Vedras no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial